sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Apropriação indébita

Há vários anos, no seu início, ouço os títulos dados para as metas religiosas, espirituais, nas igrejas brasileiras. “Ano de Abraão”, “Ano de Neemias”, “Ano de Gideão”, “Ano disso conforme Aquilo”. A prática não é privilégio somente dos Hernandes; muitas outras igrejas adotam-na.

A mim incomoda essa tentativa de viver a experiência pessoal à luz da história bíblica. Explico.

Sabemos que o Senhor não criou dois apóstolos Paulo, nem dois Moisés, nem dois “Abraões”. Somente um de cada. A nós também. Nem mesmo se você é gêmeo há uma duplicidade na experiência espiritual.

Que quer dizer que determinado grupo irá viver “o Ano” daquele personagem bíblico? Penso que há nisso uma tentativa de estabelecer alguma “segurança”, como se estabelecêssemos um pacto com Deus de que queremos transferir as ocorrências reais daqueles homens para a nossa própria vida. Se Abraão expandiu suas possessões, quero igualmente ampliar minhas posses, comprar casas, apartamentos, terrenos enfim. Se Neemias restaurou os muros de Jerusalém, quero igualmente ter restaurada a minha vida hoje devastada, seja financeiramente (geralmente é), seja emocionalmente, seja “familiarmente”, e por aí vai.

É legítimo? É possível. Mas penso ser inocente. E infantilizante.

A Bíblia chama a si de “luz”. Ela pretende iluminar nossos passos. Nisso todos concordamos. Nesse sentido, a compreensão que tenho é de que os líderes, os mestres do povo, deveriam usar os exemplos bíblicos para lançar luz diante de nossos próprios problemas, ensinando como enfrentá-los. Explico melhor.

A insistência em que nós “viveremos” as experiências daqueles homens leva-nos a criar a expectativa de algo maior do que realmente pode ser. “Aqueles homens” fizeram isso e aquilo, mas quem garante que Deus chamou cada um de nós para as mesmas coisas? Ninguém garante. Assim, quem entra numa campanha dessas, espera viver nos próximos 366 dias (2012 é bissexto) a experiência definitiva para a sua pendenga.

Há sempre um ou outro que será contemplado. Mas essa tentativa mística de “luz tabórica”* deixa de aproveitar o melhor da espiritualidade e da experiência cristã na sua vida. Quando queremos viver as experiências passadas, afastamo-nos do empenho para desenvolver a nossa própria experiência com Ele, realizada a partir do entendimento de que somos únicos, e que nossa relação com Jesus é igualmente ímpar, única.

Os nomes do passado, sejam os nomes bíblicos, sejam os da Tradição, fizeram grandes obras porque se colocaram nas mãos de Deus para um novo evento, sabendo que eram eles (e não outros) que deveriam ser usados por Deus. Não houve dois John Wesley, não houve dois Hudson Taylor, não houve dois Adoniram Judson, não houve dois George Muller. Repita em voz alta o seu nome e acrescente-o à frase: “Não há dois .....” (ou “Não há duas.....”).

O melhor a fazer é manter a Bíblia como ela é: ela é a verdade que se manifesta em forma de luz para iluminar, esclarecer a compreensão da nossa vida conforme o Senhor der o entendimento. Não devemos fazer “copy > paste” da vida de quem quer que seja, a não ser de um: o próprio Jesus. Dele são todos os anos, todos os dias, dele somos todos nós.

* Em mística, “luz tabórica” é uma referência à experiência da transfiguração de Jesus no Monte Tabor, e remete à iluminação dada por diálogo com personagens passados ou ainda com a própria pessoa do Senhor.

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