segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Outra regra de fé e prática?

Haveria boa intenção por parte daqueles que produziram tais orientações, bem como de todos os que as haviam transmitido, geração após geração, seja verbalmente, seja por escrito (o Midrash)? É certo que sim. Mas, onde estava o problema apontado por Jesus, uma vez que pode-se presumir a boa intenção dos autores e dos transmissores dessas orientações?

O problema é que essas orientações não eram Palavra de Deus e impediam acesso à Palavra revelada por Deus, ou averiguação direta da mesma. Ora, pergunto, o fato de que a produção e distribuição de Bíblias nunca foi tão ampla, implica a conclusão de que disso decorre a possibilidade do acesso ao texto bíblico, por toda e qualquer pessoa que deseje investigá-la pessoalmente? De modo nenhum! A prova é o caso que contei há pouco.

O estatuto(1), ou a declaração de fé(2), das igrejas/denominações mais recentes, rege a conduta dos que se filiam a tais instituições, muitas vezes sem levar em conta o que diz a Palavra de Deus.8 Igrejas históricas de orientação reformada(3), a luterana e algumas pentecostais adotam credos e confissões(4). Somente as mais novas têm redigido seus próprios documentos. Tirando o caráter pejorativo que as disputas e diferenças fomentaram, as divergências entre saduceus, fariseus, essênios e outras seitas menos expressivas no cenário judeu também tinham como pedra de toque as divergências de cunho doutrinário.

Instituições existem, e são constituídas, por pessoas que têm ideais e propostas em comum, e desejam que seus anseios sejam representados pela própria instituição ante a sociedade. As instituições eclesiásticas agregam pessoas que procuram respostas a inquietações e questionamentos que, para elas, ainda não foram resolvidos. Essas instituições vão crescendo, à medida que atraem aqueles que compartilham respostas de consenso, do grupo, a tais questões.

O mesmo se aplica a determinados sistemas filosóficos. Depois do Iluminismo, por exemplo, o Humanismo Existencialista atraiu muitas pessoas que, diante de um agudo sofrimento como o das duas Grandes Guerras, perderam a esperança nas respostas dadas pela religião.

Ora, quando uma instituição não dá respostas satisfatórias às pessoas, estas a abandonam, indo em busca de identidade e respostas em outra. Esta segunda instituição pode ser um sistema filosófico, um movimento nascente, ou uma instituição eclesiástica reunida em torno de uma ideologia e estabelecida em prédios ou templos.

O problema da instituição é que, quanto mais o tempo passa, mais difícil se torna uma renovação em sua maneira de ver a si mesma, ou no critério adotado para fornecer respostas às novas questões que se apresentam a cada dia. E não deveria ser assim, mesmo nas igrejas cuja norma é a utilização de antigos documentos.

É esse o exato esclarecimento que encontramos no prefácio da 17ª edição da Confissão de Fé de Westminster, onde, meu amigo, Dr. Cláudio Marra, adverte que a Confissão “não tenciona congelar-nos no passado nem inutilizar nossa capacidade de raciocínio e reflexão (...) ela nos desafia e estimula a pensarmos profundamente nossa época e a buscarmos nas Escrituras as respostas para as urgentes questões que enfrentamos”.(5)

De fato, há problemas sociais notados hoje que sequer eram imaginados há poucas décadas. Pesquisas com células-tronco, eutanásia, proteção aos direitos dos homossexuais. Ou, quem sabe, questões muito mais antigas, mas bem mais próxima a nós, como: batizar ou não um filósofo existencialista que já havia passado pelo batismo infantil?

O que diz o estatuto? E a declaração de fé? Podemos batizar ou não? Mas, essa é a pergunta a ser feita? A Congregação Cristã do Brasil (para citar um exemplo que conheço) ordena que até mesmo os cristãos adultos, vindos de outras denominações evangélicas, sejam rebatizados! Bem, considerando que cristãos ortodoxos não aceitam que Congregação Cristã seja apresentada como exemplo, por considerarem que se trata de uma seita herética, cabe questionar: O que é uma heresia? Quem determina o que é heresia? Trata-se de um conceito relativo? Cada grupo define o que entende que seja heresia?

A pergunta a ser feita – como entendo – é o que diz a Escritura a esse respeito. Suponho que devamos partir deste ponto. Mas os estatutos – dirá alguém – existem para nortear biblicamente a igreja-denominação, em defesa da fé, diante dos desafios que se apresentam. Ora, desconfio dessa declaração por duas razões muito próximas e posso esclarecê-las, começando por narrar um fato que me ajuda a esclarecer a primeira razão. E é o seguinte: fui convidado a desenvolver o projeto gráfico do livreto que contém o estatuto de uma denominação bem conhecida. Não era da minha conta, mas, em uma das reuniões com o pastor responsável por me repassar as informações e arquivos para o trabalho gráfico, perguntei que pontos haviam sido alterados no estatuto. Aquele pastor, um tanto constrangido, disse-me que algumas questões “inconvenientes” haviam sido “deixadas de fora”. Mas, em vez de se omitir quanto a questões desconfortáveis, não é evidente que a atitude bíblica, de pastoreio, seria a de enfrentar essas questões, até para eliminar a desatualização do documento?

O segundo motivo, pelo qual desconfio dessa declaração, é mais genérico. Diz respeito à pessoa por trás do estatuto, ou à instituição por trás do estatuto ou declaração de fé. A pessoa, ou comissão, que elabora o estatuto, ou a declaração de fé (ou ainda a sistematização teológica, sejamos honestos), o faz seguindo as tradições (orais, em boa parte) da instituição, seguindo as “mishnas” da sua orientação religiosa ou denominacional. O problema, aqui, é a estratificação desses textos, a elevação dos mesmos à uma categoria próxima a de “pseudo-inspirados”, e a aplicação dos mesmos a todo custo, algumas vezes a despeito do ensino bíblico

E isso quando a tradição é formalmente documentada – no papel, para que todos possam consultá-la. Existem grandes igrejas, de abrangência nacional, cuja tradição é oral mesmo: o novo membro só tem acesso à orientação teológica do grupo, sobre determinados assuntos, à medida que convive com a comunidade e se envolve com seus problemas e meandros. Só aos poucos, “os mistérios” vão sendo revelados. E quanto ao texto bíblico, quem tem tempo de ler suas centenas de páginas à procura de respostas? Creio que essa razão seria a mais apresentada na igreja da atualidade, sempre regida pelo “senso de urgência” e de fast food adotadas, pelas instituições seculares e corporativas, como padrão.

“Suspeito” que, embora tenha que dialogar com a cultura de seu próprio tempo, a Igreja não pode seguir nos trilhos, quer da modernidade, quer da pós-modernidade. Ela deve centralizar-se em Cristo e descentralizar-se do mundo. Embora esteja no mundo, não é do mundo. Ora, se parecemos ser como as demais pessoas, por que as pessoas se sentiriam atraídas por Cristo, se o que há na Igreja é igual ao que pode ser encontrado fora dela, inclusive pela hipocrisia de se dizer diferente, sem de fato ser? A Bíblia não omite a condição humana de pecado de qualquer de seus personagens; pelo contrário, narra até as mais sórdidas ações do ser humano, bem como as conseqüências que ele enfrenta como consequência de seus atos.
 
** Extraído do livro É Cristã a Igreja Evangélica?, publicado por Arte Editorial
 
(1) O termo estatuto é usado neste livro como referência ao documento oficial de cada igreja que regula e justifica sua existência, mas mais que isso, que delimita sua jurisprudência, que determina sua ascendência ou mesmo autonomia em relação a outras igrejas de mesma confissão.
(2) Uma declaração de fé neste livro é entendida simplesmente como o texto que formula sistematicamente a doutrina na qual a igreja está depositando sua crença.
(3)A relação entre o conteúdo de um estatuto e a Palavra de Deus é intermediada pela boa fé daqueles que o redige.
(4) São chamadas históricas as igrejas batistas, presbiterianas, metodistas, congregacionais e luteranas. As chamadas pentecostais históricas são Assembléia de Deus e Congregação Cristã do Brasil. Essas últimas são as primeiras, surgidas entre 1910 e 1911. Já as mais recentes (consideradas igualmente históricas) são Igreja do Evangelho Quadrangular, O Brasil para Cristo e Deus é Amor. As demais igrejas que seguem a orientação pentecostal, que no entanto surgiram após a década de 1970 têm sido chamadas neopentecostal e sua ênfase doutrinária difere na maioria dos pontos doutrinários das pentecostais históricas.
(5) Um credo é uma elaboração concisa de uma base doutrinária que espelha o conteúdo das Escrituras. Uma confissão é a proposição do credo em forma expandida, sistemática, que explica com mais clareza o mesmo conteúdo das Escrituras. Os Credos surgiram nos primeiros séculos do Cristianismo ao passo que as Confissões vieram bem depois, no período da Reforma Protestante.
(6) Confissão de Fé de Westminster. São Paulo: Ed. Cultura Cristã, 17ª ed., 2003, p. 6.

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